Só eu sei o inferno que vivi.

Anibal de Lara
8 min readApr 22, 2022

E ninguém nunca vai acreditar em mim.

Há vinte anos atrás eu brinquei de esconde-esconde com outras crianças da minha rua. Era por volta de uma e meia da tarde, no verão de 2003. O sol brilhava forte e o calor irradiava das pedras das calçadas da minha rua. Eu calejei bem a sola dos meus pés nessa fase da vida. Muitos diriam que foi uma infância boa, e eu não discordo. Só queria que nesse dia, nessa tarde, eu tivesse ficado em casa.

Como era de costume nos meus fins de semana, almocei e logo botei o pé na rua. Caminhei pela vizinhança procurando meus amigos, fomos nos reunindo um por um. Num piscar de olhos, já era fim de tarde e estávamos todos suados e cheios de poeira por ter jogado bola por horas. A ideia de brincar de esconde-esconde foi minha. E a de fazer isso numa rua diferente também.

Decidi pelo grupo que iríamos em uma rua a algumas quadras de onde estávamos. Era o tipo de rua que as mães proíbem os filhos de ir. O chão era de terra batida e não tinha saída. Tinham poucas moradias salpicadas por entre os trechos de pasto alto que preenchiam os terrenos baldios. Da meia dúzia de barracos que tinham ali, apenas dois eram habitados por uns sujeitos estranhos que às vezes eu flagrava espiando a gente pelo canto da janela. Não era um lugar que crianças deveriam estar, muito menos sem um adulto por perto. Mas qual é a criança que tem bom senso?

Nos reunimos no meio da rua e sorteamos quem iria procurar o resto do grupo. Acabou que eu tive que me esconder, e eu já tinha um lugar em mente. Uma casa de madeira escura e podre. Ela estava abandonada desde que me conheço por gente, e ninguém nunca se deu o trabalho de remover ela dali. Eu sabia que tinha uma porta destrancada na entrada do lado, e ia encontrar o lugar perfeito pra me esconder.

É comum sentirmos confiança antes das coisas darem errado. Na minha cabeça de criança, eu não sentia que poderia acontecer de outra forma. Eu iria me esconder e esperar até o momento que ouvisse as outras crianças correndo pra sair correndo e bater no ponto. Esse era o plano. Eu entrei na casa, fui até o quarto mais afastado e me enfiei num canto entre uma cama toda podre e a parede. Eu fiquei lá esperando ouvir alguma coisa. Quando se passaram uns bons quinze minutos, eu pensei em sair pra ver se já tinha acabado a brincadeira. Mas não saí. A luz diminuía a cada minuto que passava, e eu sabia que já era noite, mas eu não saí de onde eu estava.

Houve um momento que eu estava no canto daquele quarto em que o sol abaixou mais um tanto, e pensei mais uma vez que eu deveria ir embora. Logo após isso, apareceu algo no canto da porta, bem na minha frente. Tinha um rosto me encarando.

O rosto de um dos meus amigos me encarava fixamente do canto da porta. Havia um brilho surreal nos seus olhos, e a cabeça não estava conectada a corpo nenhum. Apenas um rosto imóvel pairando sobre o chão. Eu encarei aquilo sem conseguir mover um músculo. O sol continuava abaixando a cada minuto, e seus olhos brilhavam cada vez mais forte na escuridão.

Quando finalmente saí do transe, olhei para o lado e notei que não conseguia nem enxergar a cama ao meu lado. Breu completo. Sentia apenas o cheiro de suor e madeira úmida, e um silêncio tão parado que o único som audível era o do meu coração batendo e o ar entrando e saindo pela minha boca. Minha respiração estava quente e comecei a me sentir febril. Meu corpo ficou mole, e um sentimento de urgência tomou conta de mim. Eu precisava sair dali. AGORA.

Me escorei na cama e na parede e cambaleei até ficar de pé. Eu senti meus minhas pálpebras pesadas e um cansaço paralisante tomou conta de mim. Fui dominado pela vontade de dormir bem ali. Mesmo com a visão turva, vi que o rosto não estava mais na porta. Andei lentamente até ela, me esforçando pra não cair. Analisei o outro cômodo que entrei, e tinha uma janela pela qual entrava um único feixe de luz amarelo para dentro, iluminando o assoalho e fornecendo as silhuetas negras dos móveis da casa.

Tudo ali na penumbra parecia alguém de pé, até eu olhar diretamente e compreender o móvel no escuro. Então, o móvel ao lado parecia alguém de pé. E então o próximo, e depois o próximo. Comecei a imaginar pessoas por toda a minha volta. Foi quando ouvi o primeiro barulho além da minha respiração ofegante.

— Ei.— sussurrou uma voz quase encostando no meu ouvido direito. — Não fica com medo, tá? O tio tá aqui pra cuidar de você.

O cheiro que chegou no meu nariz me fez lacrimejar. Era azedo, sulfúrico. O calor do hálito fazia uma brisa úmida na minha orelha. Meu corpo congelou.

— Vem cá. — disse o homem sussurrando enquanto se afastava da minha orelha. — Não tenha medo.

Senti minha cabeça apertando e a mente se enchendo de barulho. Eu não consegui mover um único músculo do meu corpo. O suor escorria pelo meu rosto e pingava da ponta do nariz. Meus pés e mãos formigavam.

“Venha.” a voz veio da porta de um outro cômodo à minha direita.

Eu não quis olhar. Eu juro que não quis olhar, mas olhei. Virei minha cabeça apenas o suficiente para que conseguisse enxergar ele no canto do meu olho. E ele estava lá, de pé na porta.

Ele estava nu e seu corpo era desproporcional. A silhueta de alguém que parecia ter sido desenhada por uma criança, torta e sem sentido. As coxas finas e o tronco muito mais largo do que deveria ser. Os braços estreitos e compridos, e uma cabeça toda desgrenhada. Seu órgão genital pendurado entre as pernas.

— Se você não vier, eu vou aí te pegar.

Correu um arrepio por todo o meu corpo e meus olhos começaram a se encher de lágrimas. Eu ainda não consegui me mexer, apenas tremer parado no mesmo lugar, e agora por algum motivo inexplicável, virado de frente para o homem.

Quando ele deu o primeiro passo em minha direção, eu disparei rumo à saída, em meio a berros e choros.

Foi tarde demais.

Seus pés pesados marretavam o assoalho de madeira enquanto ele corria atrás de mim, fazendo o som de trovões.

E ele me alcançou e me agarrou. Seus dedos eram gelados, e no primeiro puxão senti suas unhas arranhando meu braço. Me debati, chorei e gritei por socorro.

Mas ninguém me ouviu.

Tampouco me procurou.

Depois que ele me trancou dentro de um quarto sem janela, passei o restante da noite gritando até ficar sem voz. Surrei a porta até esfolar toda a pele dos meus punhos. Chutei as paredes até sangrar as unhas dos dedos dos pés. Tudo que eu queria era que alguém me ouvisse.

Na manhã seguinte, sem ter pregado os olhos por um minuto sequer, a porta se escancarou sem aviso nenhum. O homem entra, e sem proferir palavra alguma, me agarrou pelos cabelos e me arrastou até a cozinha, onde uma porta revelou uma escada que descia até um porão escuro. Nesse caminho, passei o olho em volta e percebi que as janelas haviam sido fechadas por cobertores, impedindo que a luz do dia entrasse. Mesmo assim, alguns pontos de luz eram visíveis através dos pequenos vãos entre as tábuas da parede.

Arrancando meu cabelo aos tufos, ele me arrastou escada abaixo até o porão, que estava completamente vazio exceto por uma cadeira posicionada bem no meio. Ele amarrou meus braços e pernas na cadeira e então me deixou lá, sozinho. Seu cheiro azedo permeava o cômodo e ardia meu nariz sempre que eu respirava, e nesse momento era impossível vocalizar devido ao dano que causei à minha garganta na noite anterior. Eu sentia o gosto de sangue na boca sempre que tentava gritar.

Ele descia até o porão de tempos em tempos para ficar me encarando. Às vezes ele abria a boca e esbravejava palavras que eu não compreendia, cuspia em mim e me mordia. Periodicamente, ele largava restos orgânicos perto de mim que apodreciam com o tempo. Restos que eu às vezes reconhecia como uma perna de cachorro ou uma cauda de gato.

Mesmo em meio à tudo isso, eu não conseguia ver seu rosto direito. Mesmo depois dos meus olhos terem se acostumado com a escuridão, mesmo quando ele estava gritando na frente do meu rosto, era como se a sua face tivesse uma névoa que a permeasse.

Não sei dizer por quanto tempo fiquei naquela cadeira. Não sei dizer por quanto tempo não comi ou bebi água. Podem ter sido dias ou semanas. Eu apenas me recordo claramente do pavor de pensar que morreria lá. Da saudade da minha família, e do quanto eu desejava sair dali.

Eu perdi a conta de quantas vezes ele veio arrancar mais uma unha ou naco de carne do meu corpo. Perdi a conta de quantas vezes tentei conversar com ele. Perdi a conta de quantas vezes vomitei no meu próprio pé por não suportar o ar podre e úmido daquele porão, já que a pilha de restos só aumentava a cada dia.

Eu sonhei incontáveis noites com o som da sua risada torta enquanto raios de dor corriam por mim. Em um determinado ponto, eu desisti de querer sair e só queria que acabasse logo.

Eu não me importava mais. Cansei de tentar convencê-lo a parar.

O dia que minha vontade quebrou foi, também, o meu último dia de tormento.

Neste dia, ele desceu pelas escadas do porão como sempre fazia, veio até perto de mim e disse:

— Muito bem. Agora você é meu de verdade.

O som da sua voz ecoou na minha cabeça e me senti tonto, como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo. Minha visão girou até escurecer.

Quando meus olhos abriram, eu me vi escorado no canto entre a parede e a cama que havia escolhido para me esconder, o que parecia ter acontecido há uma vida atrás. Estava escuro e demorei um tempo para raciocinar e voltar aos meu sentidos. Toda a memória estava fresca na minha mente, o homem, seu corpo retorcido e todas as formas que senti dor. Todas as noites que gritei esperando que alguém ouvisse.

Depois de alguns minutos, me levantei e vi que todas as feridas do meu corpo haviam sumido. Eu fiquei preso àquela cadeira por tanto tempo que pensei ter esquecido como era andar, mas eu consegui. Minhas pernas funcionaram. Atravessei a casa, e no caminho vi a porta que o homem estava quando correu atrás de mim, vi a sala sem janela e vi a cozinha com a porta para o porão. Lembrei de tudo.

Saí desorientado pela porta da frente e imediatamente esbarrei com um dos meus amigos.

— Te achei! — ele disse fazendo meia-volta e correndo na direção oposta — Vou chegar no ponto primeiro!

Fiquei parado no mesmo lugar, ainda tentando entender o que tinha acontecido.

Eu vivi um inferno interminável, e no fim parece que nada foi real.

Ao longo dos anos seguintes, eu nunca mais fui naquela rua, ou cheguei perto daquela casa novamente.

Principalmente porque, logo depois de sair dela eu olhei para trás uma última vez.

E bem no meio da porta escancarada estava um homem nu, desproporcional e com o rosto coberto por névoa.

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