O Diário de Fernando Sérgio Moreira Pt. 1

Anibal de Lara
6 min readDec 13, 2021

Este diário foi encontrado numa cabana isolada nos morros da fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Informações confidenciais presentes no diário não serão divulgadas por razões de segurança e foram redigidas, já que o lugar agora é considerado de extremo perigo e está sob investigação de organizações nacionais e internacionais. Este item foi analisado extensivamente por especialistas e sua publicação foi autorizada sob o contexto de “relato sobrenatural”. Os relatos apresentados por Fernando Sérgio Moreira não foram confirmados oficialmente e estão abertos a livre interpretação.

Dia 1-19/07/1989

Minha filha disse que eu devia comprar um caderninho pra começar a escrever sobre as minhas viagens, então comprei esse aqui. Me sinto privilegiado por ter uma família que me apoia no que amo fazer, e ainda mais por conseguir prover sustento a eles através disso. Sou um homem de muita sorte. Em três dias eu e minha equipe sairemos de [REDIGIDO] rumo a [REDIGIDO] pra mais uma expedição de pesquisa ambiental. É engraçado como antes de toda viagem, o nervosismo é sempre o mesmo. Sabemos muito bem dos perigos que existem, mas tenho plena fé na minha experiência e na minha equipe. Trabalhamos juntos a mais de quinze anos e nosso trabalho já se provou de extrema importância pra análise do desgaste da camada de ozônio que vem aumentando assustadoramente nos últimos anos. É de extrema importância pra mim que eu contribua pra um planeta melhor pros meus filhos. Essa caneta velha tá meio ruim, vou lembrar de comprar outra antes de partir.

Dia 3–22/07/1989

Comprei uma caneta melhor, e mais uma de reserva. Exprimir meus pensamentos em papel têm sido relaxante e acredito que será útil pra acalmar meus nervos antes de dormir. O isolamento da selva virgem pode mexer um pouco com nossas percepções depois de um tempo. Não que seja um problema, mas nunca se sabe. Melhor prevenir do que remediar.
Já estou na caminhonete com meus companheiros, João “Patinho”, Ângelo e Fabinho. Eu realmente não poderia pedir por amigos e colegas de trabalho melhores, desde a faculdade nossos santos sempre bateram e isso com certeza é um fator que contribui com o sucesso das nossas pesquisas de campo. Passei o dia conferindo meu equipamento e passando tempo com a minha família, meu filho Renato de onze anos, minha pequena Luiza de seis e minha esposa Maria Clara. Renato como sempre não chorou, mas dava pra ver no seu olhar baixo e evasivo que ele estava triste por me ver ficar longe dele novamente. A Luiza abre o bico e faz uma choradeira sempre que eu viajo, por mais que seja assim desde antes dela ter nascido. Maria Clara diz que já se acostumou, mas não consegue disfarçar as sobrancelhas franzidas de preocupação. Só Deus sabe o quanto eu amo eles.

Dia 4–23/07/1989

Finalmente chegamos na [REDIGIDO], no [REDIGIDO] da Bolívia, depois de dezessete horas viajando apertado na caminhonete velha do centro de pesquisa. De lá, o resto da viagem foi a pé através da mata fechada. Até tem umas trilhas dos nativos pelos primeiros quilômetros, mas depois disso é bússola, mapa, coragem e experiência. O tempo calculado pra chegarmos no local exato pra soltarmos os balões meteorológicos é de cinco dias a pé. Cinco dias pra ir, mais cinco pra voltar. Seis até chegar em casa, contando com a viagem de caminhonete. Grande parte do peso que carregamos nas mochilas é em comida, já que felizmente água potável é fácil de encontrar por aqui, e carregamos tabletes de purificação de água caso a fonte pareça duvidosa. De resto, carregamos uma bússola cada um, mapas, ferramentas gerais de sobrevivência como pederneira, gaze, antisséptico, facão, lanterna, fitas coloridas pra marcar o caminho, corda e os sacos de dormir. Ângelo também conseguiu um rádio portátil chique que poderíamos usar em caso de emergência. Estamos em julho então casacos de pele de gado bem quentes são obrigatórios também, principalmente pras noites.
Agora estamos no nosso primeiro ponto de descanso, são por volta de vinte e uma horas e já estamos todos deitados a cerca de dez quilômetros mata adentro. A sinfonia da vida selvagem é linda, ao mesmo tempo que é intimidadora. Momentos como este, em que estou rodeado da vida mais natural imaginável, é sempre um momento mágico. Como biólogo, não consigo evitar de me sentir apaixonado pela mãe natureza (desculpe, Maria). O mundo é um lugar magnífico.

Dia 6–25/07/1989

Ontem choveu muito e a tempestade atrasou a gente um pouco, mas nada fora do comum. Por causa da chuva também não tirei o diário da bolsa a prova d’água, então não pude escrever na noite anterior. O Patinho deu um susto na gente quando escorregou na lama e quase despencou de uma parte inclinada que subíamos do morro. Graças a Deus, tudo segue bem. Suprimentos estão ok, e moral segue alta. O caminho de volta está sendo bem marcado. Esta noite estamos sendo abençoados por um clima mais quente e com menos vento, e a mata soa ainda mais viva depois do banho e mais uns quilômetros pra dentro. É como se as árvores respirassem a nossa volta. Incrível como é fascinante.

Dia 7–26/07/1989

Fizemos bom progresso na viagem hoje. O sol brilhou e nosso caminho foi fácil, tanto que quase não sujei o meu facão. Foi um dia de inverno quente, o que foi muito bem-vindo também. Os sons dos pássaros contrastados com os gritos dos cachorros-do-mato era como a canção mais bela e arrepiante que já ouvi, mesmo depois de tantos anos me embrenhando em matagais, a visceralidade e beleza daquilo ainda me surpreendia. Fabinho e Ângelo pareciam mais alegres hoje também, estavam contando piadas o dia todo. Patinho parecia um pouco quieto em comparação, mas seguia sorridente. A moral do grupo está ótima, suprimentos estão ok e nosso destino apenas a mais dois dias de distância. A noite hoje segue linda e estrelada, e mais do que nunca me sinto conectado com a energia das árvores, plantas, animais e insetos que me rodeiam.

Dia 8–27/07/1989

Hoje foi um dia um pouco atípico. Nossa sobe-e-desce pelos morros está quase no fim, o que é um sinal de alívio. Chegar no destino é sempre a parte mais difícil e voltar é sempre mais rápido. Acordamos com o Patinho fazendo um barulho meio alto e estranho, e ele disse ter tido uns sonhos fortes. Isso não é incomum, tendo em vista o isolamento prolongado. Me lembro de ter tido sonhos vívidos essa noite também. Sonhei que estava deitado nu no chão da floresta, olhando para cima, enxergando a copa das árvores e um pouco do céu iluminado pela lua por entre as folhas. Conforme eu respirava e sentia meus pulmões inflando e esvaziando, sentia as árvores fazendo o mesmo. Sentia meu corpo se conectando com o chão, as raízes e a energia magnânima, total e poderosa da natureza entrando em mim, e depois saindo. Entrando e saindo. Entrando e saindo. Acordei me sentindo revigorado e bem. Fabinho e Ângelo estavam mais quietos hoje também, provavelmente pela ansiedade de chegar logo no local de soltar o balão. Não conversamos muito. Já estamos deitados, prontos pra finalizar nosso objetivo amanhã. A noite hoje está silenciosa, e consigo perceber isso porque hoje o som da minha respiração está mais alto que os outros sons externos. Não sei explicar ao certo o porquê, mas está tudo bem.

Dia 9–28/07/1989

Fomos acordados de madrugada por uma tempestade de granizo. Confesso que nenhum de nós esperava por isso. A chuva forte de uns dias atrás estava dentro das expectativas, mas um granizo repentino, definitivamente não. Estamos a cerca de cinquenta e cinco quilômetros mata adentro, e uns quinhentos metros morro acima. Levantamos acampamento e corremos em busca de abrigo, algum buraco, caverna ou complexo de copas que nos protegessem das pedras geladas. Contra tudo que acreditávamos encontramos uma pequena cabana espremida entre algumas árvores. Não fazia sentido, mas também não pensamos duas vezes. Entramos e nos abrigamos lá esperando a chuva de granizo passar. Nunca vi uma dessas durar tanto tempo quanto essa durou, mas pareceu ter durado mais de cinco horas. Quando passou o granizo, continuou a chover muito forte e decidimos passar mais uma noite na cabana antes de seguirmos em frente. É um pouco estranho dormir num abrigo depois de tantas noites ao ar livre. Pelo menos é mais protegido do vento. A cabana é bem construída de madeira nobre, muito sólida. Um trabalho artesanal magnífico. Porém, é evidente que está aqui a muito tempo. A parte de fora está bem escura da umidade, e tinha bastante pó e sujeira dentro. A cabana tem um só cômodo e dentro dele uma mesa com duas cadeiras e uma cama sem colchão. Por algum motivo ela não tem janelas também. Preciso ser honesto em dizer que acho estranho encontrarmos isso na região que estamos, e algo me incomoda sobre ficar aqui. Mas não temos escolha. Patinho está em silêncio desde que corremos do acampamento, e tiveram momentos em que Fabinho e Ângelo falaram algumas coisas um pouco sem sentido. Estou concentrando meus pensamentos em minha família. Meu filho, minha pequena, e minha esposa. Escrever também me deixa mais tranquilo. A chuva ainda cai furiosa lá fora, mas pelo menos estamos bem e saudáveis. No fim, tenho que ser grato por essa cabana estar aqui.

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