O Diário de Fernando Sérgio Moreira Pt. 2

Anibal de Lara
7 min readDec 14, 2021

Dia 10–29/07/1989

Hoje acordei antes dos outros com meus ossos doendo de frio. A temperatura deveria estar nos negativos ali pelas seis da manhã. O granizo já tinha parado no dia anterior, mas a força da chuva soava como pedradas no telhado da cabana. Meus dedos das mãos e dos pés estavam ficando roxos, mas pelo menos estávamos secos. Deus lá sabe o que teria acontecido se tivéssemos ficado no mato, molhados, nesse frio. Levantei e fiz uma fogueira improvisada com uns pedaços do estrado da cama da cabana, que estava tão frágil que preferimos dormir no chão. O barulho acordou Ângelo que também levantou e aqueceu sua comida na fogueira. Comemos juntos trocando poucas palavras, apenas conferindo nossos suprimentos. Hipoteticamente, se ficássemos presos na cabana, teríamos comida por mais sete dias, já que usaríamos menos energia do que caminhando. Fizemos esta projeção nos preparando para o pior, mas a chuva eventualmente vai parar e nós poderemos continuar nossa missão. Tenho fé disso. Depois de nos alimentarmos e o Patinho e Fábio acordarem, nós ligamos o rádio portátil e tentamos sintonizar em algum canal por algumas horas. Quando conseguimos sinal, pudemos ouvir uma previsão do tempo de alguma estação Bolivariana. A tempestade é pra passar amanhã! Todos suspiramos fundo em alívio, deu até pra sentir o clima ficar menos pesado entre a gente. Aproveitarei esse tempo livre pra dedicar minhas orações a minha família, a praticar a minha escrita e meus desenhos também. Ainda não sou muito bom, mas a prática leva a perfeição! A noite de hoje continua chuvosa, mas deitamos nossas cabeças no saco de dormir com otimismo e esperança.

Dia 11–30/07/1989

A chuva ainda não passou. Sintonizamos o rádio novamente e o âncora disse que na capital o sol voltou a raiar por volta das dezesseis horas. Aqui são vinte e alguma coisa e estamos aguardando qualquer sinal de trégua da água que não para de cair. Nossos ânimos estão flutuantes, estamos tentando nos manter otimistas. De acordo com a direção do vento, é pra chuva passar logo. Estamos indo deitar hoje ainda com esperança de que acordaremos numa manhã seca. Hoje me deito ainda orando por mim e meus colegas.

Dia 12–31/07/1989

Acordamos e o som da água batendo no telhado estava ainda mais ensurdecedor que ontem. Acordei novamente antes de todos e esquentei meu café da manhã na pilha de madeira queimada. Em um momento, enquanto estava mastigando um pedaço de bolacha seca, levantei meus olhos e pensei ter visto Patinho sentado em seu saco de dormir, olhando pra mim. Quando eu disse “Patinho?” e pisquei, ele estava deitado do mesmo jeito de quando acordei. Eu sei que o isolamento mexe com nossa cabeça, não sou estranho disso. Mas não me sinto bem nessa cabana, e me sinto um pouco desconectado de meus companheiros. Patinho seguiu o dia em silêncio, e Fábio e Ângelo cochichavam entre si às vezes. Ligamos o rádio e sintonizamos novamente no canal de notícias Bolivariano, e segundo eles, a chuva havia cessado na maior parte do país. Mas aqui, a chuva seguia tremenda. Hoje deito minha cabeça no meu saco de dormir com impaciência e ansiedade. Sigo orando para que tudo fique bem.

Dia 13–01/08/1989

Praticamente não dormi essa noite. Foi difícil tirar o pensamento de que algo não está certo. Meu peito aperta ao pensar que posso não voltar pra casa, mas Deus está comigo, e Ele não permitiria que uma tragédia acontecesse com minha família. Minha amada família. Não posso deixar que minhas esperanças acabem, mas esta noite, por entre a estática da chuva, eu podia ouvir Ângelo e Fábio cochichando. Estamos a dias vivendo em quase escuro absoluto, salvo por quando ligamos as lanternas ou acendemos a fogueira, que fica mais econômica a cada dia que passa, porque já quase não tem mais madeira pra queimar. Quando é de dia, ainda é escuro por causa da tempestade. A noite é um breu completo. O cochicho dos dois está me incomodando, me dando ansiedade, e eu acho que vi o Patinho me olhando sentado mais uma vez. Mas não sei. Hoje avaliei meu inventário e contei comida por mais três dias. Era pra ter pra mais quatro! Não sei o que está acontecendo, mas não vou me precipitar e confrontar meus amigos de longa data. Amanhã tentarei conversar com eles, coisa que não fazemos direito desde antes de chegarmos aqui. Hoje durmo ansioso, ainda esperando que essa chuva passe.

Dia 14–02/08/1989

Quando se passa tempo o suficiente na mata, dormindo a céu aberto, você se habitua a ter um sono leve pra se manter seguro contra animais curiosos ou predadores. Essa noite acordei com a sensação de que havia algum predador a minha volta. Dava pra sentir o peso dos seus olhos sobre mim, e não sei se era coisa da minha cabeça, mas parecia até ouvir pegadas de cão próximo ao meu saco de dormir. Acordei num pulo e iluminei a cabana com a lanterna que mantenho sempre ao meu lado, esperando, no fundo da minha mente, ver o Patinho sentado olhando pra mim do outro lado da sala. Ele estava deitado, assim como os outros. Desliguei a lanterna e deitei, e voltei a sentir a sensação de presença próxima. Orei até conseguir dormir. Quando acordei, todos os três já estavam de pé e esquentando seus cafés da manhã. Sorriram pra mim e me deram bom dia quando notaram que levantei. Fazia tempo que não via uma expressão de felicidade. Quase que me trouxe conforto, se eles não tivessem todos virados pra mim e sorrido ao mesmo tempo. Correu um arrepio pelo meu corpo e eu perguntei se alguém havia pego comida dos meus suprimentos ontem. Houve um momento de silêncio, e então Patinho se levanta, se vira em direção a porta e dispara de ombro contra ela, arrancando a trava de madeira que mantém ela fechada e correndo pro meio do matagal debaixo da chuva torrencial. Ângelo e Fábio pareciam tão perplexos quanto eu, e tremeram comigo ao ver a silhueta do Patinho sumir de vista. Já passou o dia inteiro e ele ainda não voltou, e sinceramente, não acho que ele sobreviva muito tempo nesse clima lá fora. Não sei o que houve com ele, e a essa altura, estou mais preocupado em sair dessa cabana vivo do que com qualquer outra coisa ou pessoa. Hoje não sei se vou conseguir dormir.

Dia 15–03/08/1989

Estivemos poupando o máximo possível a bateria do rádio, mas o barulho da chuva tá ficando insuportável. Ligamos o rádio e rodamos entre as estações procurando por algum tipo de entretenimento. Soubemos, segundo a previsão do tempo, que o clima estava firme por toda a região que nos abrangia, desde o centro-oeste do Brasil até o extremo oeste da Bolívia. Depois que Patinho sumiu, o clima entre nós três ficou um pouco mais leve, e voltamos a conversar e debater algumas ideias. Ele deixou todos os seus suprimentos, então tínhamos comida pra aguentar uns dias a mais. Encontrei na mochila dele uma sopa enlatada e uns pedaços de carne seca que eu havia trazido pra expedição. Ângelo e Fabinho concordaram comigo que o Patinho estava agindo estranho a vários dias, e juntos nós suspiramos aliviados por pelo menos não ter que lidar mais com isso. No meio das conversas que tivemos relembramos de algumas brincadeiras de faculdade, e lembrei de vezes que tive que fazer a parte do Patinho nos trabalhos em grupo. Ou quando ele me fez perder uma das provas mais importantes do ano porque me fez beber tanto quanto ele bebia. Bem que mereceu, esse cara. Ângelo e Fábio sempre foram bons alunos como eu, e nós sempre tivemos uma boa sintonia, nós três. Foi bom ter um dia ouvindo ao rádio com amigos. Hoje vou dormir um pouco mais aliviado.

Dia 16–04/08/1989

Acordei com um aperto imenso no peito, lembrando que era pra termos chegado em casa ontem, dia 15. Imaginei minha família chorando pela minha falta. É como se um buraco tivesse sido aberto no meu peito, e o seu vazio se alastrado pelo resto do meu corpo. Eu sinto tanta dor que não consigo chorar, apenas gemer no meu saco de dormir, que é o que tenho feito o dia todo. Gemer de dor. Ângelo e Fábio também só se deram conta agora do tempo que estamos presos aqui, apenas tentando sobreviver. Eles gemiam de dor comigo. Abrimos a porta e encaramos por horas a chuva que caía tão forte quanto no primeiro dia. Eu saí e senti a água gelada cair no meu rosto e encharcar minhas roupas em segundos. Meus membros estavam travando de frio quando me virei pra voltar pra cabana. Ângelo e Fábio me abraçaram e me ajudaram a tirar minha roupa molhada. Eles são grandes amigos. Amigos de verdade. Nessa noite dormiremos com nossos sacos de dormir próximos uns dos outros, pra mantermos o calor e evitarmos hipotermia.

Dia 17–05/08/1989

Acordei no breu da madrugada com um barulho molhado vindo dos sacos de dormir ao meu lado. Quando liguei e apontei a lanterna, vi Fábio em cima de Ângelo enfiando uma faca no corpo morto. Ele enfiava a faca do mesmo jeito que alguém enfia uma chave na fechadura de uma porta. O corpo do Fábio estava irreconhecível, e o Ângelo não parou, nem tremeu, nem desviou seu olhar mesmo quando eu apontei a lanterna na sua cara e gritei com ele. Só depois que levantei e me armei com minha faca, ele olhou pra mim calmamente e disse “Relaxa irmão, é pra gente comer. Tá tudo bem”. Eu não soube o que fazer, gritei com ele até minha voz falhar e ele não parava de enfiar a faca, fazendo aquele barulho molhado. Eu não aguentava ver aquilo, chutei ele com força e ele caiu no chão, sem largar a faca da mão. Ele olhou pra mim mais uma vez e disse “Relaxa irmão, é pra você comer. Tá tudo bem.” e raspou a faca na própria garganta várias vezes até abrir um sulco enorme e sua cabeça ficar pendurada no pescoço. Joguei os corpos deles lá fora e passei o dia ouvindo a chuva e pensando. Pensando na minha família e em como eles estão tristes por eu não ter voltado pra casa. Pensando no Patinho morrendo sozinho e com frio no meio do mato. Pensando no barulho molhado da faca entrando e saindo da carne do Ângelo. Pensando em Deus e no que Ele quer me ensinar com tudo isso. Hoje eu vou orar e pedir pra Deus me mostrar o caminho d’Ele, não importa qual ele seja.

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